É possível inovar sem ser inovador?

É possível inovar sem ser inovador?

É possível inovar sem ser inovador? 1280 720 Vizta

Neste breve ensaio, nossa ideia é discutir algumas possibilidades e limites da cultura de inovação, pensando no contexto educacional amplo: cursos, livros, blogs, podcasts e quaisquer outras fontes buscadas por executivos e empreendedores para aprender sobre o tema. Entendendo que inovar é ser original (e que a originalidade não é “pura”, pois sempre parte de referências anteriores), vamos refletir sobre experiências da chamada “pedagogia da criatividade”.

Entre o medo e a esperança

O mantra dos negócios já foi a administração “científica”, já foi a qualidade total, já foi just-in-time, já foi muita coisa. Atualmente, é a inovação, de preferência disruptiva, quase sempre norteada pelas potencialidades tecnológicas. E não é para menos: quem nunca viu uma palestra começando com os exemplos de companhias como Netflix, Uber, Tesla ou Google? Quem nunca viu comparativos sobre indústrias inteiras sendo “disrompidas” em poucos anos?

Medo e esperança movem esse mantra da inovação: o medo de se tornar o próximo BlockBuster e a esperança de ser o próximo Airbnb. Medo de quem já está à frente de um negócio bem-sucedido, esperança de quem ainda nem começou.

E já não basta a inovação incremental, aquela dos ajustes constantes e do aperfeiçoamento metódico, rodando PDCAs e investindo em uma cultura de insatisfação com o “bom”. Esse caminho da melhora na “manutenção”, além de não ser sexy, traz o perigo de ser lento em tempos acelerados.

Na falta de uma ciência dos negócios, faz sentido supor que a paranoia com a inovação radical tem um pé na realidade. “Só os paranóicos sobrevivem”, já nos disse Andrew Grove. (Sobre a questão da não cientificidade do mundo dos negócios, a leitura de “The halo effect”, de Phil Rosenzweig, deveria ser obrigatória nas business schools mundo afora, mas isso talvez expusesse parte do problema que está na alma do negócio de muitas dessas escolas… Em resumo, o autor mostra como muitas das explicações para o sucesso de certas empresas são pseudocientíficas, com o storytelling de um ou dois exemplos sendo extrapolado como teoria geral. Mas esse é um assunto para outra conversa. E obrigado pela dica valiosa, Pedro!)

No escopo deste ensaio, vamos supor que a inovação seja mesmo obrigatória. Por mais tradicional e conservadora que seja a indústria em que atuamos (e talvez exatamente por causa desse conservadorismo), todos precisamos nos defender atacando: criando nós mesmos os produtos, métodos e modelos de negócio inovadores. Mas por onde começar?

Quase sempre, olhando para o lado, olhando pra fora. Ou seja, vendo os exemplos, lendo os livros escritos por líderes inovadores, procurando referências sobre como a inovação radical foi arquitetada e implementada nas empresas que admiramos – as que dão lucro, e as que prometem dar (em algum prazo, mas por que a pressa?).

Lemos os livros, assistimos às palestras, fazemos os cursos que explicam os métodos e as mentalidades, contratamos consultorias que nos ajudam nessa tarefa. Queremos reinventar o setor de logística, a forma como as pessoas compram roupas, a jornada de aprendizado nas escolas, a gestão de talentos nas empresas.

Mas será que estamos fazendo isso da maneira certa? Será que conseguiremos inovar de fato com o olhar viciado em procurar caminhos já percorridos por outros? Em outras palavras: será que é possível inovar de verdade sem ser inovador? Provavelmente, não, se estivermos falando de inovações disruptivas. Ou seja, pelo menos na forma visionária que se imagina para criação radical do novo. (Mas, de novo: não necessariamente esse deveria ser o imperativo da inovação.)

Dito de outro modo: podemos ler os livros, assistir às palestras, fazer os cursos que explicam os métodos e as mentalidades, contratar consultorias que nos ajudam nessa tarefa. Mas precisamos ter em mente que:

a) esses inputs precisam de muito mais processamento do que costumamos estar dispostos a empreender (se quisermos criar o novo realmente novo); ou

b) podemos entender que estamos na jornada de inovações menos radicais, sem que haja qualquer problema nessa escolha.

O que parece estar dissonante é querer chegar a uma parte nova do universo usando um meio de transporte que só leva até um lugar já conhecido.

A coerência criativa dos criadores não é coincidência

Os exemplos bem-sucedidos de inovação radical em negócios quase sempre envolvem uma coerência inovadora que está para além do visível. Elementos da cultura corporativa, arquitetura organizacional, métodos de trabalho, estrutura de capital, rituais de comunicação — são muitos os fatores que dialogam entre si para dar espaço a essas disrupções. E eles costumam formar uma singularidade orgânica, com reforço mútuo, com retroalimentação positiva. Nada disso é novidade a quem está acostumado a ler cases de sucesso, em que pesquisadores ou os próprios protagonistas relatam essa história contada a posteriori.

Mas algo parece nos escapar, algo que está na base de tudo: em geral, as empresas e produtos inovadores (sobretudo a inovação consistente) inovam também em muitos outros aspectos críticos de sua existência. Não é apenas que haja coerência entre os elementos de seu business canvas. É mais do que isso: seus métodos essenciais não são mera aplicação de uma fórmula bem-sucedida criada em outro contexto. São, antes, partes integrantes da mentalidade criativa, frutos de processos autônomos de reflexão. Quando assimilam alguma tendência ou ritual criado fora, fazem tantas adaptações quantas se mostrarem necessárias para o seu contexto específico – e não fazem isso apenas como “flexibilização” casuística. Em geral, seu processo é o de aprofundamento nas premissas, sem medo da reinvenção.

Em outras palavras, não é coincidência que o Spotify tenha uma organização inovadora por squads. Há ali uma forma de ver o mundo que nasce criativa e autônoma. E aí, tudo deriva dessa forma de fazer as coisas. É improvável que, apenas copiando modelos já testados ou seguindo métodos de fora, a empresa pudesse fazer diferente dos outros.

Criar é pensar de forma livre, e isso sempre foi a exceção

Essa autonomia de pensamento que está na base da criação é rara; sempre foi assim, pelo menos do ponto de vista estatístico. A diferença é que, hoje, há mais disponibilidade ferramental para os criativos traduzirem ideias em produtos. Além disso, a comunicação ostensiva facilita que vejamos isso acontecer por toda a parte. Mas a originalidade (e não estamos falando de uma forma purista) é incomum. 

E por que é assim? Há algo genético e imponderável nessa equação? Talvez haja, ainda não sabemos ao certo. Mas já sabemos algumas coisas a respeito de como essa liberdade se desenvolve ou se atrofia. Em geral, isso tem relação direta com cultura e educação. 

De fato, assim como existe uma educação para o ajustamento e a obediência cega a regras (na escola, na família, na legislação), pode haver uma pedagogia da provocação à autonomia de pensamento. Uma espécie de método para não seguir métodos, por paradoxal que pareça.

Existe, enfim, uma “pedagogia da criatividade”. Ela está baseada na ideia de que alguém pode olhar para uma tela em branco e, em vez de pintá-la, rasgar o tecido, questionando a própria natureza do que é um quadro – da mesma forma que repetir isso seria pouquíssimo original.

“Ensinar” a criar começa por ter na audiência alguém que queira efetivamente aprender.  Isso pode parecer óbvio, mas não são poucos os casos de “estudantes” desengajados e à espera de uma resposta que venha de fora, como mágica, na educação executiva.

“Ensinar” a criar envolve quatro grandes passos: 

  1. observar criticamente a realidade, para reconhecer o comum, o clichê, a repetição, o já conhecido;
  2. entender por que as coisas são assim, ou seja, aprofundar-se nos fundamentos daquilo que se observa;
  3. aplicar um esforço reflexivo, de questionamento desses fundamentos e de recontextualização; 
  4. experimentar ousadamente as alternativas. 

Em síntese: colocar em crise o que existe e exercitar a imaginação. Ou então: observar pensando e pensar testando

Isso significa mergulhar nos fundamentos: ou alguém acha que o desenvolvimento da metodologia dos OKRs se deu no vazio? A história das metas e métricas é tão antiga quanto a profissionalização da administração de empresas. A genialidade de Grove, ao implementar o modelo na Intel, foi a junção da “gestão por objetivos” de Drucker a planos de ação e aos “stretch goals” usados em outras empresas. Criou um sistema coerente e absolutamente adequado à realidade da empresa que comandava. Observou pensando e pensou testando.

Mas pensar dá trabalho e produz angústia: antes de qualquer insight ou epifania, antes de qualquer associação nova, há o vazio do pensamento crítico: ruínas de ideias sem algo para colocar no lugar. A sensação é quase inevitável, basta perguntar a qualquer grande artista se, às vésperas de elaborar sua obra-prima, ela estava serena sobre os desdobramentos e convicta do que alcançaria.

Observando os criativos

Aliás, se sairmos dessa ideia de uma metodologia, vale mesmo a pena investigar um pouco como funcionam as mentes criativas, por exemplo. Afinal, se empreendedores, engenheiros e gerentes de produto são os novos Da Vinci, faz sentido tentar entender como essas pessoas “operam”, para fazer melhor proveito dos muitos reais investidos na transformação das companhias.

A propósito disso, uma primeira observação é a de que, como diz o Naun, “não existe caminho fácil para uma tarefa complicada”. Isso quer dizer apenas o seguinte: ao contrário do que possa parecer a quem olha de fora, a criação frequentemente está associada a um enorme esforço de desbravamento: não foi seguindo uma técnica de representação que Picasso reinventou a pintura. Foi conhecendo profundamente a tradição e a técnica, mas pensando que elas eram insuficientes para uma expressão nova. De forma análoga, é muito improvável que o próximo Google seja inventado com a aplicação rigorosa de um passo a passo do método sugerido em um livro. O esforço não está na aplicação disciplinada do que já existe, mas justamente fora dela: na reflexão autônoma.

Isso nos leva ao segundo ponto: a forma como as pessoas criativas se relacionam com as referências do mundo. Obviamente, não existe criação no vazio: toda grande obra de arte, teoria ou inovação radical parte de uma realidade, de um conjunto de aspectos observáveis no mundo. Então, o olhar para o que já existe é fundamental, pois é a partir dele que se pode originar uma recombinação inusitada. As notas musicais estão aí, limitadíssimas, para não nos deixar mentir. 

O que faz diferença na criação não é a matéria-prima em si, mas os arranjos, os usos, as combinações e associações antes impensadas. E isso depende de duas coisas: riqueza da variedade e exercício do olhar

Variedade aqui significa entrar em contato justamente com o que não seja óbvio. Ir para a Índia nos anos 60 não foi um detalhe nas composições dos Beatles que vieram em seguida. Curiosamente, gestores ávidos por inovar procuram inspiração em espelhos, em empreendedores que estão ali adiante, mas na mesma trilha. Como esperar que algo realmente novo surja de referências supersaturadas?

O segundo aspecto sobre essa coleta de “matéria-prima” é o exercício do olhar. Quando dava aula de interpretação de textos, eu me deparava com alunos desesperados com a dificuldade em depreender sentidos implícitos de um poema, quase sempre olhando pro alto, como quem procura algo na própria mente. A dica era sempre a mesma: o sentido do texto está no texto, é para lá que você deve olhar. Isso pode significar, por exemplo, olhar detidamente para a jornada de um consumidor. Mas pode ser o contrário: olhar para caminhos percorridos justamente por quem não é consumidor, percebendo uma oportunidade que estava invisível. O olhar precisa ser exercitado, mas, de novo, não adianta achar que será sempre pela aplicação de um caminho já percorrido.

“No pain, no gain” — mas só no discurso?

Aprendi essa questão da educação do olhar com a Natalia, desde cedo artista plástica, que era sempre interpelada pelos colegas a respeito do que ela conseguia enxergar de especial em certas obras. Ela respondia algo assim: “Sabe quando vocês são capazes de ficar horas discutindo um lance de futebol, um pênalti, uma falta? Então… para mim, é impossível ver o que vocês enxergam, porque eu simplesmente não tive uma educação da sensibilidade para isso. Se vocês enxergam todas essas sutilezas e complexidades, é porque treinaram esse olhar, mesmo sem perceber.” A boa notícia é que se trata de algo que pode ser desenvolvido; a “má” notícia é que isso não acontece de uma hora para outra.

É disso que se trata, de exercitar o olhar para enxergar as coisas, mais do que apenas ver. Não basta, portanto, ter contato com referências variadas e não óbvias. Não basta ir ao museu de arte moderna e passar menos de vinte segundos na frente daquele quadro, ou assistir a um filme “difícil” e logo querer substituir a experiência desconfortável pela pizza com amigos. A potência criativa pressupõe uma certa resistência, um desejo de ir além do conforto imediato. 

Não há suficientes estímulos para isso, infelizmente… Ao contrário, vivemos a era de redução de atritos, em que até a indústria de vinhos começa a produzir o que o consumidor acha mais fácil de gostar, sem ter que fazer o esforço para aprender. 

Conceitos como o edutainment são distorcidos e, em vez de se criar uma diversão que também ensina, deseja-se aprender de maneira divertida. Não é que as experiências de aprendizado precisem ser tediosas: não faltam exemplos de especialistas e métodos que ajudam o aprendiz a desenvolver competências de forma inesquecível. Mas o inesquecível quase sempre implica algum sofrimento durante o processo — depois que passa, há o prazer da realização. O problema é aceitar que a recompensa venha a posteriori. Na maioria das vezes, não há disposição prévia para isso. 

A blasfêmia da mediocridade

Todas essas dificuldades poderiam não ser um problema. 

Poderíamos aceitar que a inovação disruptiva é mesmo rara e quase aleatória: pessoas especiais, aproveitando condições especiais, vão aparecer com algo que não imaginamos, de uma forma que não cogitávamos, a partir de recursos que não enxergamos. E a democratização (ainda limitadíssima, é claro) das tecnologias vai permitir que isso aconteça de forma quase imprevisível.

Poderíamos aceitar que existem oportunidades e exemplos de negócios bem-sucedidos e consistente, apesar de pouco inovadores, entendendo que se pode ir até bem longe com fórmulas criadas por desbravadores. 

Poderíamos até mesmo aceitar que as companhias não precisam ter a vocação de crescer indefinidamente ou existir para sempre. Seus ciclos podem ser menos duradouros, seu propósito pode se encerrar em algum momento, seu fôlego pode ser poupado no sprint final.

Mas pensar que a criatividade é rara, que a inovação radical não é obrigatória ou que as companhias podem ter cumprir uma missão limitada soariam quase como blasfêmias no mundo dos negócios. Ser mediano, dizem, é ser medíocre — e ninguém publica livro autobiográfico contando como fez para apenas produzir valor razoável para o mundo sem querer transformá-lo radicalmente (assim como raramente alguém fala sobre os erros críticos que cometeu). 

Olhar para dentro ou para fora?

Não há problema em ser mediano. Não há problema em ser movido por motivações que não estejam relacionadas a um legado. Assim como não há problema em procurar inspiração nos pioneiros, ter um propósito de liderar uma transformação radical. Há espaço para tudo no mundo.

Há espaço, por exemplo, para caminhos do meio, em que o horizonte seja a Tesla, mas a realidade satisfatória seja a aplicação acrítica (ou apenas pouco crítica) de fórmulas e métodos alheios. A execução disciplinada costuma ter gerar mais valor do que apenas a visão além do alcance. 

A questão aqui é a da procura por eficiência: gastar a energia necessária a cada coisa. No caso do aprendizado sobre inovação, entender que existe uma correlação importante: de um lado, o desenvolvimento de talentos e culturas criativas; de outro, a cansativa e consumidora tarefa de pensar com autonomia, com todos os riscos associados a esse esforço. Essas dimensões raramente andam separadas. 

Essa reflexão autônoma pode estar presente, sim, em experiências educacionais, desde que todos saibam que não se trata de “ensinar a criar”, mas apenas “oxigenar” e provocar esse pensamento livre.

Na prática, é preciso ter em mente o seguinte: olhar demais para fora provavelmente vai resultar em trilhar um caminho que outros já seguiram – e lembremos novamente: não há problema nenhum nisso. 

Mas saibamos que as inovações que mais importam, inclusive as que não rendem capa de revista, quase sempre se fizeram com a escolha de um caminho único, e esse caminho supõe um olhar para dentro. Um olhar demorado, investigativo, reflexivo e insistente. Um olhar em que o mundo é filtrado pela inteligência, preferencialmente coletiva. 

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